MATILDA

Ao ler Matilda, algo misterioso se mexeu dentro de mim. Foi então que eu percebi o quanto, ao ler uma obra realmente original (como é Matilda), somos desafiados tanto emocional quanto intelectualmente — como interpretar algo que nunca vimos antes?

Criatividade — será essa a chave que abre as portas do sucesso para Road Dahl, autor da Fantástica Fábrica de Chocolate? O fato é que a criatividade não está desvinculada da tradição literária, ao contrário, dialoga com ela propondo uma nova forma — talvez até uma nova estética.

Matilda é uma menina de 5 anos que aprendeu a ler sozinha e, indo até a biblioteca, leu todos os livros infantis que encontrou, passando aos livros adultos, incluindo os clássicos. Percebemos que a escolha do autor é pelo exagero — levar características ao extremo do extremo, o que pode ser uma forma de despertar as emoções do leitor (e para mim essa emoção no caso é o “maravilhamento” — algo parecido acontece quando as histórias incluem poderes mágicos).

NO ENTANTO, Matilda é menosprezada e até mal tratada pelos pais. Eles não têm interesse em livros, nem em qualquer conquista de Matilda, só gostam de TV. Como isso também levado ao exagero, sentimos um estranhamento: o  que vão pensar as crianças ao ler essas cenas, que mostram que nem sempre os pais são confiáveis? Pior ainda, em certo momento Matilda decide se vingar do pai.

Quando Matilda entra na escola, algo parecido acontece. A diretora, Sra. Taurino, é uma vilã que odeia crianças. Xinga-as, e cria punições físicas originais, por exemplo um armário apertado com cacos de vidro e pregos, onde elas devem ficar de castigo.

O ESTRANHAMENTO: mais uma vez, pensamos: o que vai sentir a criança ao ler que nem os pais nem a escola são confiáveis (muito pelo contrário)? Afinal, geralmente tentamos mostrar o contrário, que a criança deve gostar dos pais e da escola, um lugar onde ela vai passar grande parte da sua vida. Porém, o bom leitor já sabe que nenhum livro (nem mesmo os adultos) deve ser interpretado ao pé da letra.

A INTERPRETAÇÃO: se a obra é muito original, como dissemos, a interpretação também deve ser. O autor, Roald Dahl, parece ter tido a intenção de fazer um DUPLO MOVIMENTO: Ele insere situações extremas, como há nos contos de fada (pensem em Branca de Neve), num cenário moderno (escola, carros etc), possibilitando que a criança se identifique. Sim, a criança muitas vezes não se sente compreendida pelos pais, e a escola ainda é um lugar que trabalha com punições (embora não mais físicas) — as crianças temem serem mandadas “à sala da diretora”. E temem ainda mais serem injustiçadas.

E se existe a IDENTIFICAÇÃO (como existe nos contos de fada), por outro lado a criança também pode se distanciar do que foi narrado, ao perceber que seus pais são muito melhores que os pais de Matilda, e sua escola é bem mais segura: esse é o duplo movimento. E ao longo desse movimento (se aproximar e se afastar), existe a emoção da descoberta: o que mais de terrível a diretora Sra. Taurino vai fazer? Qual será o seu limite? O HUMOR que há nesse exagero também ajuda no distanciamento.

O PODER MÁGICO surge para trazer uma solução. Exatamente como nos contos de fada, que trazem muitas vezes fadas-madrinhas, príncipes, transformações etc. Para a criança, não existe uma diferença relevante entre poderes reais e poderes mágicos: eles se misturam. Até porque, mesmo utilizando o Poder Mágico (chamado de “milagre”), Matilda também se vale da inteligência. Mais IDENTIFICAÇÃO aí, pois é Matilda quem encontra as soluções.

Roald Dahl, pelo visto, além de criar uma forma nova, que se assemelha às vezes a um desenho animado (pensem na diretora girando e jogando uma aluna pelas tranças), pensou na criança como protagonista de sua vida, que pode não ser tão favorável — e até hoje a criança é vítima de maus tratos, isso não é algo excepcional.